19 julho, 2013

Eu Peneiro o Espírito e Crivo o Ritmo


                                       Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo
                                       Do sangue no amor, o movimento para fora
                                       O desabrigo completo. Peneiro os múltiplos
                                       Sentidos da palavra que sopra a sua voz
                                       Nos pulsos. Crivo a pulsação do canto
                                       E encontro
                                       O silêncio inigualável de quem escuta

                                       Eis porque as minhas entranhas vibram de modo igual
                                       Ao da cítara

                                       Eu peneiro as entranhas e encontro a dor
                                       De quem toca a cítara. A frágil raiz
                                       De quem criva horas e horas a vida e encontra
                                       A corda mais azul, a veia inesgotável
                                       De quem ama
                                       Encontro o silêncio nas entranhas de quem canta

                                       Eis porque o amor vibra no espírito de quem criva

                                       O músico incompleto peneira a ideia das formas
                                       Eu sopro a água viva. Crivo
                                       O sofrimento demorado do canto
                                       Encontro o mistério
                                       Da cítara
                                                             Daniel Faria, in "Dos Líquidos"

                                                                                               Ilustração by Juliano Lopes






28 março, 2013

Lírica ~ Mariana Ianelli


Chegasse antes da hora
Eu te veria
No ato que sempre só imaginei —
Tua forma estólida, absorta,
Possuída
De um saber que livro algum
Jamais te deu.

Sem tocar teu corpo cântaro
Provaria
O sangue da tua meditação,
E aquele rancor sequer perdoado
A um morto
Num amor rebentaria.
Alheio ao teu juízo,
Como quem canta à noite
À boca de um poço
E pela voz de um outro
É correspondido.

Assim eu revelaria
O teu amor aos assassinos
Precipitando-se
Num rosto compassivo
Que me recebe na hora certa

E permite
Que o meu pensamento
Penetre o teu sem relutância
E faça contigo
Irremediavelmente
O que só um poeta faz
Com as palavras.

(Ilustração  Yun He  by  Wangjia )

19 fevereiro, 2013

Colocar-se no Lugar do Outro

 por Flávio Gikovate 

Uma das operações psíquicas mais sofisticadas que aprendemos, lá pelos 7 anos, é esta, de tentarmos sair de nós mesmos para imaginar como se sentem as outras pessoas.
De repente podemos olhar para a rua num dia de chuva e imaginar – o que, de certa forma, significa sentir – o frio que um outro menino pode passar por estar mal agasalhado.
Nossa capacidade de imaginar o que se passa é como uma faca de dois gumes. O engano mais comum – e de graves conseqüências para as relações interpessoais – não é imaginarmos as sensações de uma outra pessoa, e sim tentarmos prever que tipo de reação ela terá diante de uma certa situação.
Costumamos pensar assim: “Eu, no lugar dela, faria desta maneira.” Julgamos correta a atitude da pessoa quando ela age da forma que agiríamos.
Achamos inadequada sua conduta sempre que ela for diversa daquela que teríamos. Ou melhor, daquela que pensamos que teríamos, uma vez que muitas vezes fazemos juízos a respeito de situações que jamais vivemos.
Quando nos colocamos no lugar de alguém, levamos conosco nosso código de valores. Entramos no corpo do outro com nossa alma. Partimos do princípio de que essa operação é possível, uma vez que acreditamos piamente que as almas são idênticas; ou, pelo menos, bastante parecidas.
Cada vez que o outro não age de acordo com aquilo que pensávamos fazer no lugar dele, experimentamos uma enorme decepção.
Entristecemo-nos mesmo quando tal atitude não tem nada a ver conosco. Vivenciamos exatamente a dor que tentamos a todo o custo evitar, que é a de nos sentirmos solitários neste mundo.
Sem nos darmos conta, tendemos a nos tornar autoritários, desejando sempre que o outro se comporte de acordo com nossas convicções. E assim procedemos sempre com o mesmo argumento: “Eu no lugar dele agiria assim.”
A decepção será maior ainda se o outro agiu de modo inesperado em relação à nossa pessoa. Se nos tratou de uma forma rude, que não seria a nossa reação diante daquela situação, nos sentimos duplamente traídos:pela agressão recebida e pela reação diferente daquela que esperávamos.
É sempre o eterno problema de não sabermos conviver com a verdade de que somos diferentes uns dos outros; e, por isso mesmo, solitários.
Aqueles que entendem que as diferenças entre as pessoas são maiores do que as que nos ensinaram a ver, desenvolvem uma atitude de real tolerância diante de pontos de vista variados a respeito de quase tudo.
Deixam de se sentir pessoalmente ofendidos pelas diferenças de opinião. Podem, finalmente, enxergar o outro com objetividade, como um ser à parte, independente de nós.
Ao se colocar no lugar do outro, tentarão penetrar na alma do outro, e não apenas transferir sua alma para o corpo do outro. É o início da verdadeira comunicação entre as pessoas.

Fonte:  http://flaviogikovate.com.br/